Vamos pegar uma carona no Rosinha do Amor?
O motorista Jardel Ferreira, que roda por Surubim e João Alfredo, tinha 4 anos quando ganhou do pai um carrinho rosa. O presente se transformou em promessa, que agora ele cumpre sendo fiel apenas a uma cor
Maria Souza
Com cerca de 65 mil moradoras e moradores, Surubim, a 112 quilômetros de Recife, tem mil e quinhentas Toyotas do tipo Bandeirantes autorizadas a circular por suas ruas. De acordo com a Secretaria de Defesa Social do município, esse é o número de alvarás concedidos para que os automóveis (mesmo de cidades vizinhas) trafeguem levando pessoas e cargas na cidade batizada por São José.
Dentre os tantos carros vistos ali, um se destaca: ele pertence ao senhor Jardel Ferreira, 41 anos, proprietário de um Bandeirantes completamente rosa. Não é exagero: a capota, o motor, o volante, os pedais, a marcha, a frente, as laterais, tudo é rosa, até mesmo o Santo Antônio que protege o automóvel. Aliás, o próprio Jardel faz questão de transitar todo vestido da mesma cor do Rosinha do Amor, apelido carinhoso que deu ao Toyota.
Há sete anos, a lotação de seu Jardel é uma das principais atrações das praças de transporte alternativo de passageiros das cidades de Surubim e João Alfredo. Esse estilo único lhe trouxe fama e o levou até o Projac, estúdio da Rede Globo de televisão. Em janeiro de 2015, ele foi convidado ao programa “Encontro com Fátima Bernardes” para mostrar ao Brasil a sua paixão rosa. Posteriormente – a fama anda – ele também foi convidado a participar de uma reportagem no “Domingo Espetacular” da Record.
Esse la vie en rose (cantada por Edith Piaf, e não Edit Piá, hein?) tem uma explicação. Seu Jardel era criança quando recebeu do pai um carrinho cor de rosa, o gesto foi tão significativo que ele prometeu que, quando comprasse um carro, ele seria da mesma cor. “Eu morava em uma casinha de taipa, tinha quatro anos na época. Meu pai trabalhava no Sul e comprou dois carrinhos de plástico, um rosa e um laranja. Deu o laranja para meu irmão e o rosa ficou comigo. Então eu disse a ele [meu pai] que, quando crescesse, compraria um carro e o pintaria de rosa”, explica.
Em 2015, seu Jardel, que vive na zona rural de João Alfredo, adquiriu um Toyota Bandeirantes verde e decidiu transformá-lo no seu sonho de criança. “Cheguei na oficina e disse ao mecânico que só pintava ele se fosse totalmente de rosa, tudo mesmo”. Além da mudança da cor, o veículo do seu Jardel voltou ao modelo original. Quando ele arrematou o então verdinho, o veículo era alongado e possuía seis portas, mas, devido a problemas com a regulamentação, o motorista optou por transformá-lo no modelo original, um jipe de duas portas. É um curioso caso de “desalongamento” do carro.
Seu Jardel diz não se incomodar com a concorrência – já existe outro Toyota todo rosa circulando naquela praça – e garante que nunca sofreu preconceito relacionado à cor do jipe. Mas não é bem assim: ele reconhece que já foi questionado sobre a própria sexualidade. “O pessoal perguntava muito sobre isso antes da minha ida à Globo. As pessoas me questionaram se eu era gay”, relembra ele, para quem os usos das cores são, assim como identidades e gêneros, questões pessoais.
SEM ELE, TUDO PARA
Em Surubim, assim como na maioria das cidades do agreste, o Toyota Bandeirantes é o principal veículo de transporte de passageiros. De acordo com José Ronaldo Barbosa, presidente da Cooperativa dos Toyoteiros e Transportadores Alternativos do Agreste de Pernambuco (CTTAAPE), a cidade recebe por mês em média 3.856 veículos do tipo, vindos de municípios circunvizinhos como João Alfredo, Toritama, Santa Cruz e Caruaru. Para José, as Toyotas exercem uma função fundamental na cidade: “sem elas, a economia para”. A lotação, por exemplo, é o principal meio de acesso às zonas rurais da cidade. Para Janaina Costa, 25 anos, moradora da comunidade rural Barra da Onça, em Surubim, o baixo custo da passagem e a acessibilidade em áreas de difícil acesso faz com que a procura por esse veículo seja alta. “Onde moro, A Toyota é a melhor opção para se chegar.”
Outro dia, outra viagem: minha experiência na Toyota
Thalícia Sousa
Agosto de 2019, sábado, 10:47h da manhã, começo da Avenida Agamenon Magalhães, em Caruaru. Estou voltando para Surubim depois de uma semana de aulas no campus da UFPE. Entro na primeira Toyota que aparece sentido Toritama\Santa Cruz e que possui os meus critérios de escolha: nem tão vazia de forma que eu possa me sentir desconfortável com o motorista (geralmente, é homem), nem tão cheia que eu sinta que vou derreter pelo calor.
Pouco depois de eu ter embarcado na Toyota vermelha, ela para. Entram mais passageiros e alguns vendedores se aproximam para oferecer o que tinham. Primeiro, um rapaz jovem que vendia água. Depois, um senhorzinho castigado pelo sol chega e oferece confeitos. Ninguém comprou nada.
Eu vou sentada na parte de trás e dali observo. Entre os passageiros que subiram no transporte, está um homem com bota de vaqueiro, o que lembra meu pai, por isso eu dou um leve sorriso para ele. O homem devia ter entre 40 e 50 anos, acredito. Mas não foi só o seu estilo que me chamou atenção: ele abriu uma lata de cerveja logo depois que entrou e começou a beber. Apesar de não ser algo lá muito comum, era, enfim, um dia quente de sábado.
Depois, ele extrapolou: acendeu um cigarro, que foi apagado quase que instantaneamente a pedido do motorista. Ele jogou o cigarro na estrada e, aborrecido, questionou o pedido. Nessa hora, eu e uma mulher com blusa verde neon, que subiu no transporte no mesmo momento que o homem, trocamos olhares cúmplices. Eu já não sentia a mesma empatia por ele que senti inicialmente. Nessa hora, começou uma discussão na Toyota sobre fumantes, alcoólatras, vícios e afins.
‘’Ah, mas eu fumo há muito tempo e o cheiro não me incomoda’, dizia ele. Geralmente quem fuma já se acostumou com o cheiro, eu arrisco dizer. Foi em vão, porque o homem nem olhou para mim e continuou o papo com os outros passageiros. Eu não estava incluída.
Nessas viagens nos toyotões, o melhor esporte é observar o ao redor enquanto seu destino não chega. Na viagem, reparei no menino hiperativo que estava ao lado das prováveis mãe e tia. Ele provocava os passageiros sentados no banco da frente – para uma pobre mulher, chegou a perguntar se ela não havia tomado banho. Isso causou um riso discreto nas possíveis familiares e o silêncio de todos.
Tempo vai e tempo vem, esses e outros passageiros são substituídos por outras pessoas (ou somados aos animais que, às vezes, são levados na parte de cima do transporte). Dessa vez, o motorista não se preocupou em só sair quando a Toyota estivesse lotada, já devia estar bem cansado naquele dia. Ou será que era pressa pra encontrar alguém? O ócio da espera faz a gente ter uma visão mais romântica e imaginar histórias às vezes. Enquanto eu reparo no motorista, envio uma mensagem no celular: ‘’Segunda eu volto porque te amo (e me amo também)’’.
Nessa substituição dos passageiros, ainda entraram duas mulheres com uma criança, uma menina de cabelo cacheado preso em um pompom com o desenho de uma ovelha. Lembrei de quando eu era bem mais nova e ia para a Feira de Toritama comprar roupas com minha tia e minha mãe pegando Toyotas. Nesse instante, eu só consegui pensar em como é bom ter sempre esse transporte em alta demanda, principalmente quando não se tem carro e se vive em uma cidade que quase não oferece outros transportes alternativos e com um preço acessível.
Isso é válido mesmo que os motoristas briguem entre si pelos passageiros; mesmo que apenas querendo ser gentis (ou não) eles percam a noção e já peguem suas bolsas e a bebê que está nos braços da mãe para conduzir alguém até o seu Toyota. No caso a bebê era eu, há uns 20 anos, e os braços eram os da minha mãe. Claro que essa história não terminou bem e acabamos viajando com outro motorista.
No final, a gente segue indo e vindo no Toyota que ora encontra gente conhecida (muito comum) — e o transporte serve como ponto de encontro pra colocar o papo em dia — ora encontra desconhecidos que pensam bem diferente de você. Assim, a viagem se transforma quase que em um trabalho etnográfico. Ora a gente também mal consegue conversar com alguém, de tão alto que é o barulho do transporte. Ora a gente só viaja ciente (ou tentando ignorar) os riscos, devido a insegurança das estradas, do transporte e dos motoristas. Nesses casos não tem romantismo, apenas o ‘’viajo porque preciso’’.
Para acalmar o coração de quem pelo menos tem um pouco de fé, em quase todos os Toyotas que viajamos somos acompanhados por Jesus, Padre Cícero, Nossa Senhora e\ou algum outro símbolo religioso representado por adesivos, muito comuns nesses transportes. É quase como se fosse uma regra para dirigir esses veículos.
Os Toyotas podem não ser o transporte mais confortável e seguro do mundo, mas são quase sempre a solução mais recorrente e barata para muitos do Agreste, muitos da zona rural, que frequentemente precisam ir até a cidade e não encontram alternativas tão acessíveis. Esses veículos também são o meio de sustentação de muitas famílias, mesmo que isso também signifique viajar para longe dos seus familiares.
Surubim, por volta das 13:30h da tarde, centro da cidade. Eu chego ao meu destino final, desço do transporte junto com a mulher de blusa verde neon, pago pela viagem e outros passageiros entram para fazer o percurso dentro da cidade, enquanto o motorista ainda não termina o seu expediente. Ele realmente parecia cansado, espero que termine logo e descanse. Afinal, todos os dias é um vai e vem, e a vida e a estrada se repetem.