Cento e noventa e seis Toyotas e um jeans viajante

Em Toritama, capital nordestina no fabrico da peça, não só a economia local, mas os estudantes e quem trabalha ou mora em outras cidades, dependem dos veículos alongados  – e há décadas é assim

Layane Lima

Frases de efeito, orações, piadas: quem viaja nos toyotões convive com o bom humor e a fé dos motoristas) (Foto: Géssica Amorim)

Não é novidade que a pandemia da Covid-19 evidenciou diversas falhas no serviço público e privado brasileiro. Nas grandes metrópoles, o sistema urbano de transporte coletivo, por exemplo, foi palco de uma série de debates: um serviço essencial que também se tornou ao mesmo tempo uma espécie de espaço maior da possibilidade de contaminação, uma vez que as lotações foram uma constante.  A fotografia do carioca Yan Marcelo de um ônibus superlotado viralizou: era a síntese da junção entre a necessidade de sair de casa, a pouca frota disponibilizada pelas empresas e a cor e classe de quem foi mais afligido pelo coronavírus.

A capacidade correta de passageiros é frequentemente ultrapassada pelos loteiros, sugerindo necessidade de maior fiscalização (Foto: Sérgio Lucas)

Em Toritama, a 130 quilômetros do Recife, muitas vezes as cenas nos transportes coletivos foram muito parecidas – mas o automóvel, não.

Ali, a população de 45 mil habitantes possui como principal meio de deslocamento coletivo a Toyota, principalmente o modelo alongado. Nelas, é comum que o espaço para 12 pessoas se amplie para 18, 20 e até 30 passageiros.  Nos dias de maior movimento no Polo de Confecções, é comum ver estes carros abarrotados – mesmo agora, sem que a pandemia tenha acabado. A capital do jeans é o segundo maior polo de confecção ‘jeanswear’ do Brasil, sendo responsável por 16% da produção nacional – “Tori” é a principal do Nordeste no segmento.

Daniel usa as Toyotas desde a infância: antes, para ir da zona rural para a escola; hoje, para ir para a universidade (Foto: arquivo pessoal)

O universitário Daniel Nascimento, 29 anos, utilizava com mais frequência o carro para ir ao centro da cidade,  onde então tomava o ônibus para ir à faculdade quando as aulas eram presenciais (na UFPE, onde ele estuda, as aulas voltarão nesse formato em janeiro de 2022). Desde o início da pandemia, ele deixou de usar os toyotões. “Como em outras regiões do Brasil, a questão do transporte público é muito precária no interior do estado. Evitei ao máximo por causa da aglomeração, pois é impossível ter distanciamento na Toyota. Fiquei com muito medo”, explica o jovem.

A Toyota é algo que há muito faz parte da vida de Daniel e de todos que nasceram no Agreste Setentrional de Pernambuco. O universitário lembra que, quando criança, residia no sítio Gangungo, em João Alfredo, e ia aos sábados para a feira com a sua tia ou mãe. “A gente voltava  na Toyota lotada, era uma loucura, o pessoal vinha da feira e colocavam as coisas uma em cima da outra. Mas ao mesmo tempo era muita diversão, era um lazer”, diz o estudante, frisando que, sem o veículo, ele não teria outras opções para se locomover na cidade. Há cerca de 10 anos, estudantes que moravam na Zona Rural só podiam contar com o Bandeirantes, único meio de transporte disponível na época para ir até a escola. Hoje, utilizam ônibus escolares para transportá-los até o colégio. “Na Toyota se aglomeravam cerca de 20 a 30 estudantes. Era perigoso,  muita falta de segurança”, lembra.

Fiscalização e superlotação

CTTU afirma realizar fiscalizações para verificar condições dos veículos e mesmo a reavaliação de condutores (Foto: Daniel Bezerra)

Ao contrário do que muitos pensam, existe uma inspeção obrigatória destes veículos, e não é qualquer motorista que possui o direito de circular com seu automóvel alongado. Em Toritama, 196 Toyotas são cadastradas na Companhia de Trânsito de Transporte Urbano (CTTU), responsável pela regularização dos transportes que cruzam diariamente o município. O diretor presidente da CTTU de Toritama, Daniel Bezerra, conta que anualmente as Toyotas passam por uma vistoria, onde são verificadas as condições dos veículos, bem como o uso dos equipamentos obrigatórios e a reavaliação dos condutores. As fiscalizações possuem o intuito de acabar com o transporte clandestino no centro da cidade, bem como na rodovia PE 90, que liga Toritama a outros municípios. Para isso, a CTTU de Toritama possui uma parceria com o Departamento de Estradas e Rodagens (DER) e a Polícia Militar.

Um curso de Transporte Alternativo e, claro, a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) são obrigatórios aos motoristas. “Cada condutor pode se inscrever em uma empresa credenciada pelo Detran e de imediato obter sua formação, ele receberá conhecimentos tanto da norma legislativa quanto do aperfeiçoamento da sua condição veicular”, diz Daniel, lembrando que o veículo movimenta a economia de Toritama. O Parque das Feiras abre diversas oportunidades de empregos, e as pessoas que moram nas cidades vizinhas utilizam este meio de transporte para virem até aqui”. Uma boa radiografia da economia local foi realizada pela revista Leia Já, acessível aqui.

A analista financeira Ginda Cláudia, 42 anos, passou dez anos entre Surubim, onde morava, e Toritama, onde trabalhava. A conexão entre os 40 quilômetros de distância era feita justamente através das Toyotas.  “Foram muitas situações: às vezes boas, às vezes críticas, às vezes terríveis”, conta  Cláudia. O baixo preço da viagem era um ponto positivo, mas o desconforto era um valor alto a se pagar, relembra. “Na maioria das vezes, os passageiros iam na ‘burrinha’, um banquinho localizado na parte de trás do veículo, onde cabiam quatro pessoas enfileiradas em forma de trenzinho. Era horrível, ia gente sentada na marcha, no colo, e às vezes virávamos os bancos para caber mais gente. Os motoristas queriam levar o máximo de passageiros. Se no transporte cabiam 12, eles levavam 20, 25 e até 30 pessoas.”

A analista financeira reforça a questão da segurança e inspeção deste tipo de transporte e acredita que estes precisam passar constantemente por revisões para manter a eficiência, o que não era muito levado a sério na época. “A gente se divertia muito, mas era bem sofrido e perigoso, surgiam entradas de ar, os pneus estouravam, se rasgavam, explodiam”, conta. 

Filhos de Claudia gostam de viajar no Bandeirantes como brincadeira: antes, a mãe tinha obrigação de se locomover usando o transporte (Foto: Layane Lima)

Hoje, os tempos mudaram com a intensificação das fiscalizações. Atualmente, Cláudia ainda utiliza a Toyota para voltar a sua cidade. Conta que, muitas vezes, dá preferência por serem mais rápidas que o ônibus, e, além disso, são um hobby para seus filhos. “Eles não querem ir no banco do meio, somente na parte de trás pela aventura, é uma emoção só”. Quando João de Oliveira, 7, e Maria de Oliveira, 5 estão a bordo, a analista assegura a segurança de ambas com a sua presença  no mesmo espaço. Cláudia lembra que a falta de organização do sistema urbano de transporte coletivo não é um fato passado, ou que existe apenas nas pequenas cidades como muitos pensam, mas sim, uma realidade em todo o país. “O que nós passamos hoje em dia nos ônibus não é diferente.”

PS: O título desta matéria faz referência a uma espécie de clássico contemporâneo do cinema, o filme Quatro Amigas e um Jeans Viajante.