“Robô não faz isso não”
Disputando o título de capital nacional do Toyotão, Brejo da Madre de Deus orgulha-se de sua produção artesanal: há beleza, força, engenhosidade e delicadeza nos alongamentos feitos ali
Victória Pascoal
Não são cinco da manhã e o barulho surdo do motor começa a ser ouvido pelas ruas de Brejo da Madre de Deus, cidade das mais bonitas do Agreste pernambucano, a 204 quilômetros de Recife. A geografia do município, cercado por serras e pedras imensas, recebeu há décadas esse elemento novo, espécie de marco civilizatório: a Toyota Bandeirante, cujo som funciona como gatilho do dormir e despertar da população local. Ali, o carro é tão icônico quanto as rochas – e foi para poder circular por cima de várias delas, aparentemente insuperáveis, que ele foi eleito.
Brejo da Madre de Deus é considerada a cidade agrestina na qual nasceu o Toyotão, modelo alongado do Toyota Bandeirante, carro que aportou no Brasil em 1962. No começo dos anos 1980, um objetivo prático detonou o processo: a necessidade de transportar mais pessoas e produtos pelas áreas pedregosas, alagadas, distanciadas, alinhada ao desejo de gerar uma fonte de renda, fez com que o chassi original ganhasse mais 80 centímetros de comprimento, “esticando” o carro e redesenhando assim o seu projeto.
O precursor dessa história toda foi Belmiro Laranjeira, cuja oficina inaugurada nos anos 70 permanece aberta – hoje, ela é tocada por seu filho, Jessé. Um belo dia, para espanto geral, o mecânico cortou um Bandeirantes ao meio – e criava ali um dos ícones do interior pernambucano: como tantas “gambiarras”, era um objeto nascido da necessidade e da genialidade (saiba mais sobre o passo a passo do alongamento no infográfico Bota pra torar!). Belmiro também transformava, mesmo que sem querer, a história da sua cidade natal.
A modificação deu tão certo que logo uma pequena frota de jipinhos brancos, brilhantes, novinhos, chegava até a porta da oficina prontos para serem “torados” ao meio e transformados em chamativas lotações. Jessé era criança e recorda da cena. “Tinha gente que fechava os olhos quando ele começava a serrar um carro novo ao meio. ‘Tu vai fazer isso mesmo, Belmiro?’, perguntavam”. No início, o alongamento do chassi era feito no olho, na tentativa e erro, observando como se comportava o carro em exercício. Depois dos testes e ajustes, os carrões passaram a ser liberados e logo outras oficinas adotaram a técnica de Belmiro: Brejo consagrava-se como o nascedouro do Toyotão.
A esticada inicial, de 80 centímetros no chassi, começou a não ser suficiente para as necessidades locais: os chassis receberam mais 1,10 metros (um duas portas se transforma em quatro portas) ou mesmo 1,40 (para o Toyotão de seis portas). Segundo fãs desses carros (há vários grupos no Brasil, com páginas nas redes sociais), essas dimensões são adequadas para aumentar o tamanho da lotação sem comprometer a ergonomia do off-road.
Uma infeliz coincidência levaria a vida de Belmiro: em 1997, ele morreria em um acidente de trânsito justamente quando dirigia um dos seus jipes alongados. Felizmente, viveu tempo suficiente para ver o agreste ser tomado pelos jipões. Seu trabalho seria seguido pelo filho Jessé, além de irmão e primos que ou trabalham nas oficinas ou como toyoteiros.
Não se tem conhecimento de quantos toyotas alongados estão em circulação hoje. “Mais de mil só em Brejo, com certeza”, diz Valdimar Oliveira, o jovem gerente de uma loja de peças para bandeirante em Brejo. De fato, não há números mais recentes, mas, segundo o site do Lexicar Brasil, o Detran contava 7.200 toyoteiros registrados em todo o estado, em 2005, 1.300 deles em Brejo da Madre de Deus. Naquele momento, calculava-se 10 mil toyoteiros em todo o país.
Valdimar foi nosso guia turístico pelas oficinas de Brejo, que visitamos bem antes da pandemia. Nossa primeira parada foi na Oficina de Leyson, que não trabalha com alongamento, mas teve um papel essencial para entendermos a importância e a potência econômica do veículo. Leyson trabalha com Toyotas há nove anos, começou por conta da crise econômica. Antes de ser o chefe na oficina de restauração, ele comprava e vendia carros usados. Antigamente, era agricultor, plantava cenouras como continuação da cultura da família. Na oficina de Leyson (cujo sobrenome é Souza), trabalham oito homens, uma queda em relação a 2019, quando a equipe era composta por 10 pessoas, cinco deles fixos e cinco provisórios.
Entre os funcionários, está o mestre soldador Hermman Hamsing, de 55 anos. Conhecido também como Alemão, Hermman trabalha há 25 anos com Toyotas em Brejo. Seu emprego anterior era na Volkswagen de São Bernando, São Paulo. Hermman veio a Brejo a passeio, trazido pela mulher pernambucana. Logo na primeira semana ligou para o pai e disse: “vou ficar”. Quando perguntado sobre o porquê da escolha, Hermman sugeriu que olhássemos para os lados: Brejo da Madre de Deus ainda é uma bonita cidade com pouca interferência na paisagem, rodeada por uma cadeia de montanhas (torcemos que essa paisagem seja preservada).
A beleza foi suficiente para Hermman, que se estabeleceu em Brejo, constituiu família e já construiu duas casas ali com o esforço da sua atividade.
Leyson menciona que os mecânicos que trabalham com ele são os Artesãos de Brejo. Bate no muque todo orgulhoso ao dizer “Robô não faz isso não!”. De fato, ao observar a solda manual do fundo de uma picape Bandeirante, percebemos que não basta qualquer técnica: tem que ter delicadeza ali. Um carro como esse precisa de uma certa dose de elegância na montagem.
Seu Leyson e seus homens já mandaram Bandeirantes para os estados de Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Norte e para os países Suíça, Inglaterra e EUA. O preço a ser investido no automóvel varia de acordo com o bolso do proprietário. Leyson nos contou sobre um maranhense que aplicou perto dos R$ 100 mil na sua Bandeirante. A band passa de três a quatro meses na restauração. O piso do valor cobrado em 2019 era de 15 mil. Agora, dois anos depois da visita, o investimento é a partir de 25 mil reais para reformar os veículos.
ALONGAMENTOS (BREJO DA MADRE DE DEUS)
João Astevão de Lima, mais conhecido como seu Danda, comanda desde 1982 a Dandautos – oficina de alongamento automotivo. Acompanhados de Valdimar, o guia, chegamos ao espaço e entre uma equipe de, pelo menos, dez homens vimos um clássico Jeep Willys na cor goiaba sendo restaurado. No meio dessa raridade, avistamos outras raridades sendo montadas. Esqueletos de toyotas, máquinas de costura… a oficina de Seu Danda é uma homenagem ao faça-você-mesmo. O mecânico que criou quatro filhas com a profissão já deu entrevistas para diversas revistas especializadas em carros, sempre falando sobre o alongamento.
Seu Danda é um dos poucos que ainda alongam o Bandeirante, ainda que não tenha nenhum problema legal no ofício. Mas, em 2014, uma lei dificultou a obtenção de documentos para quem deseja dirigir a band alongada (veja aqui). No entanto, mesmo com essas dificuldades, o que não falta é motorista querendo ser toyoteiro. Atualmente, Seu Danda cobra 30 mil para alongar a quatro portas e 40 mil para alongar o jipão de seis portas. Os veículos passam 70 dias na oficina.
O TOYOTÃO NA ACADEMIA
O Toyota Bandeirante foi tema de uma dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal de Pernambuco, em 2020. Com autoria de Aline Oliveira da Silva, o trabalho partiu de uma pesquisa sobre o processo de adaptação do veículo em Brejo da Madre de Deus. O objetivo da pesquisa foi analisar o “Jipão” (como é chamado o Bandeirante adaptado) enquanto um elemento representativo da comunidade e um agente transformador das práticas sociais do município, levantando referências teóricas capazes de auxiliar no entendimento de sua aproximação com o conceito de cultura material.
Aline Oliveira, 36 anos, conta que o interesse pelos Toyotas surgiu ainda criança: seu pai era toyoteiro de praça e da prefeitura de Brejo. Durante dois anos, a designer entrevistou toyoteiros, representantes da prefeitura da cidade, alongadores em Brejo da Madre de Deus e Caruaru, mas só com toyoteiros brejenses. Ao longo desse processo de pesquisa, muitas coisas chamaram sua atenção. “Desde o orgulho que os alongadores têm ao falar sobre o processo até a forma como a história do Toyota se entrelaça com a da cidade. O desenvolvimento do produto e da cidade de Brejo era interdependente, a melhora de um ocasionava em melhorias no outro quase que simultaneamente”, explica.
A pesquisadora ainda diz que as oficinas em Brejo se tornaram locais de difusão gratuita de conhecimento para seu estudo, e um alongador em especial foi importante para esse trabalho, Antônio Bale, já falecido, mas que contribuiu ao contar como a escassez de veículos na região impulsionou o processo de adaptação dos bandeirantes na região.
*colaborou: Cladisson